"A chama de uma vela" (fragmento)
"(...)
A lâmpada vela,
e portanto vigia.
Quanto mais estreito é o fio de luz,
mais penetrante é a vigilância.
(...)
A lâmpada é um signo de uma grande espera.
Pela luz da casa distante,
a casa vê,
vela,
vigia,
espera.
(...)
Por sua luz,
a casa é humana.
Ela vê como um homem.
É um olho aberto para a noite.
(...)"
"Assim se fala da lâmpada como se poderia falar da luz que ilumina os caminhos e que nos fascina, a luz de uma vela, tendo esta também um duplo sentido, o de iluminar e de aquecer. O que nos fascinará tanto numa simples vela?!
O seu lado romântico, que herdamos dos nossos antepassados oitocentistas? A cor vibrante e dilacerante que encerra? O perigo que existe ao acendê-la e torná-la chama? O simples derreter da cera em seu redor que cria montanhas e estalactites que, de forma natural, não podemos criar? O iluminar do caminho? Uma forma de obter luz natural? O misticismo da vela...!!!!
Que vejo eu, tu e todos numa vela? É um fascinio. E a luz acessa,... num quarto escuro, ... em noite cerrada ..., fala-nos de solidão. Remete-nos para o nosso passado de histórias encantadas. Transporta-nos para um outro mundo, o da imaginação e olhando lá bem do fundo ficamos à espera que o sonhador noturno, ou desesperado diurno, apague a luz e vá descansar num sono profundo. (...)"
Gaston Bachelard
“A Chama de Uma Vela”, de 1961, Bachelard buscará o termo de sua estrutura de pensamento. Nesta etapa, o conceito que vinha delineando de Devaneio toma um aspecto central. O devaneio é uma atividade psíquica manifesta no mundo racional. E será na poesia e no seu estudo que se buscará a percepção desta atividade. O que importa na leitura de uma obra poética é o sentimento que a imagem pode provocar no sujeito-leitor. Para Bachelard, portanto, há uma relação direta poema-leitor que é única; para além mesmo da intenção inicial do autor do poema. A imagem literária é portanto, dialética.
Esta dialética avança pelo universo onírico dos poetas, estabelecendo a regra de que não há síntese possível entre imagem e conceito. Só através desta alma feminina e lunar é que se pode alcançar o lado noturno da alma. Aquele que guarda os tesouros do coração dos alquimistas, a pedra filosofal do sentimento de estar no mundo.
Com este grau de amadurecimento, percebe-se em Bachelard um alinhamento com diversos místicos e homens ditos iluminados por seus contemporâneos através dos tempos. Particularmente o pensamento oriental apresenta muitas similaridades entre a forma como a imagem per si é reconhecida como uma via de iluminação. Um caminho de ascese. No Ocidente, também identificamos em alguns cristãos místicos, como Angelus Silésius e São João da Cruz elementos semelhantes à pratica do conceito de devaneio bachelardiano. Por fim, o neoplatonismo, pode-se perceber, é corrente fortemente influenciadora em Bachelard. Desde sua fase inicial, através do culto aos quatro elementos, até a etapa final do devaneio onírico, onde se estabelece a relação entre o humano e o divino desde os tempos do bíblico José.
É forçoso reconhecer que o pensamento da cultura européia e ocidental sempre em termos gerais, desvalorizou a imagem como via reflexiva e a função da imaginação como elemento digno de estabelecer a fundação ou mesmo o centro de uma episteme. Entretanto, no século XX, e, muito provavelmente, também no século XXI, cada vez mais, filósofos, sociólogos e demais pensadores e analistas da cultura na qual estamos inseridos enfatizarão a necessidade de um caminho diferente do até então trilhado desde a fundação de nossa sociedade judaico-cristã, ou pelo menos, desde as bases estabelecidas na Grécia da razão dialética como via única de conhecimento. Assim como Bachelard, Sartre e outros pensadores do mesmo calibre concordam com a idéia de que a Imagem é diferente da Percepção. Esta simples constatação nos encaminhará para a via do Onirismo é um caminho que possui especificidades, muito diferenciadas da via intelectual.
Pode-se exemplificar as consequências de tal filiação de pensamento, mais voltado para o terreno fenomenológico, pelos percursos de acadêmicos que refutaram a racionalidade asséptica da pesquisa de campo, com suas conclusões traduzidas para o “ocidentalês” universitário, trilhando uma via que os levou a mergulhos no imaginário e no pensamento mitico de outras culturas e civilizações, chegando a transmutar suas próprias existências, desfazendo visões de mundos extremamente arraigadas em nossas mentes por anos e anos de educação tradicional., através da citação do pesquisador Carlos Castãneda, que com sua obra sobre a cultura dos índios Yaquis, do México, mergulhou em um novo universo, onde o onírico sobrepunha-se amplamente ao mundano e racional. Se fosse possível um encontro entre o filósofo francês e o antropólogo, que, dizem, é brasileiro, temos certeza de que o diálogo travado seria extremamente profícuo no sentido de uma fundação de uma ontologia do espiritual, onde o devaneio bachelardiano seria de extrema valia para o “parar o mundo” conforme insistentemente enfatizado por D. Juan ao seu discípulo.