quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Livro "A chama de uma vela" Bachelard


"A chama de uma vela" (fragmento)

"(...)


A lâmpada vela,

e portanto vigia.

Quanto mais estreito é o fio de luz,

mais penetrante é a vigilância.

(...)

A lâmpada é um signo de uma grande espera.

Pela luz da casa distante,

a casa vê,

vela,

vigia,

espera.

(...)

Por sua luz,

a casa é humana.

Ela vê como um homem.

É um olho aberto para a noite.

(...)"



"Assim se fala da lâmpada como se poderia falar da luz que ilumina os caminhos e que nos fascina, a luz de uma vela, tendo esta também um duplo sentido, o de iluminar e de aquecer. O que nos fascinará tanto numa simples vela?!

O seu lado romântico, que herdamos dos nossos antepassados oitocentistas? A cor vibrante e dilacerante que encerra? O perigo que existe ao acendê-la e torná-la chama? O simples derreter da cera em seu redor que cria montanhas e estalactites que, de forma natural, não podemos criar? O iluminar do caminho? Uma forma de obter luz natural? O misticismo da vela...!!!!

Que vejo eu, tu e todos numa vela? É um fascinio. E a luz acessa,... num quarto escuro, ... em noite cerrada ..., fala-nos de solidão. Remete-nos para o nosso passado de histórias encantadas. Transporta-nos para um outro mundo, o da imaginação e olhando lá bem do fundo ficamos à espera que o sonhador noturno, ou desesperado diurno, apague a luz e vá descansar num sono profundo. (...)"

Gaston Bachelard



“A Chama de Uma Vela”, de 1961, Bachelard buscará o termo de sua estrutura de pensamento. Nesta etapa, o conceito que vinha delineando de Devaneio toma um aspecto central. O devaneio é uma atividade psíquica manifesta no mundo racional. E será na poesia e no seu estudo que se buscará a percepção desta atividade. O que importa na leitura de uma obra poética é o sentimento que a imagem pode provocar no sujeito-leitor. Para Bachelard, portanto, há uma relação direta poema-leitor que é única; para além mesmo da intenção inicial do autor do poema. A imagem literária é portanto, dialética.

Esta dialética avança pelo universo onírico dos poetas, estabelecendo a regra de que não há síntese possível entre imagem e conceito. Só através desta alma feminina e lunar é que se pode alcançar o lado noturno da alma. Aquele que guarda os tesouros do coração dos alquimistas, a pedra filosofal do sentimento de estar no mundo.

Com este grau de amadurecimento, percebe-se em Bachelard um alinhamento com diversos místicos e homens ditos iluminados por seus contemporâneos através dos tempos. Particularmente o pensamento oriental apresenta muitas similaridades entre a forma como a imagem per si é reconhecida como uma via de iluminação. Um caminho de ascese. No Ocidente, também identificamos em alguns cristãos místicos, como Angelus Silésius e São João da Cruz elementos semelhantes à pratica do conceito de devaneio bachelardiano. Por fim, o neoplatonismo, pode-se perceber, é corrente fortemente influenciadora em Bachelard. Desde sua fase inicial, através do culto aos quatro elementos, até a etapa final do devaneio onírico, onde se estabelece a relação entre o humano e o divino desde os tempos do bíblico José.

É forçoso reconhecer que o pensamento da cultura européia e ocidental sempre em termos gerais, desvalorizou a imagem como via reflexiva e a função da imaginação como elemento digno de estabelecer a fundação ou mesmo o centro de uma episteme. Entretanto, no século XX, e, muito provavelmente, também no século XXI, cada vez mais, filósofos, sociólogos e demais pensadores e analistas da cultura na qual estamos inseridos enfatizarão a necessidade de um caminho diferente do até então trilhado desde a fundação de nossa sociedade judaico-cristã, ou pelo menos, desde as bases estabelecidas na Grécia da razão dialética como via única de conhecimento. Assim como Bachelard, Sartre e outros pensadores do mesmo calibre concordam com a idéia de que a Imagem é diferente da Percepção. Esta simples constatação nos encaminhará para a via do Onirismo é um caminho que possui especificidades, muito diferenciadas da via intelectual.

Pode-se exemplificar as consequências de tal filiação de pensamento, mais voltado para o terreno fenomenológico, pelos percursos de acadêmicos que refutaram a racionalidade asséptica da pesquisa de campo, com suas conclusões traduzidas para o “ocidentalês” universitário, trilhando uma via que os levou a mergulhos no imaginário e no pensamento mitico de outras culturas e civilizações, chegando a transmutar suas próprias existências, desfazendo visões de mundos extremamente arraigadas em nossas mentes por anos e anos de educação tradicional., através da citação do pesquisador Carlos Castãneda, que com sua obra sobre a cultura dos índios Yaquis, do México, mergulhou em um novo universo, onde o onírico sobrepunha-se amplamente ao mundano e racional. Se fosse possível um encontro entre o filósofo francês e o antropólogo, que, dizem, é brasileiro, temos certeza de que o diálogo travado seria extremamente profícuo no sentido de uma fundação de uma ontologia do espiritual, onde o devaneio bachelardiano seria de extrema valia para o “parar o mundo” conforme insistentemente enfatizado por D. Juan ao seu discípulo.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Pensamento Depressivo


A Depressão se caracteriza também por tipos próprios de esquema de pensamento. As idéias e crenças da pessoa deprimida são, freqüentemente, negativas. Apesar dessas idéias parecerem artificiais e completamente sem fundamento para as pessoas não-deprimidas, ou mesmo para o próprio deprimido quando não está em Depressão, durante o momento em que o afeto está deprimido esses pensamentos parecem bastante verdadeiros. Depois de passada a crise de Depressão o próprio depressivo entende o absurdo de tais pensamentos.
Não há, evidentemente, apenas um esquema de pensamento característico para todos pacientes deprimidos mas, de um modo geral, podemos reconhecer certos esquemas de pensamento comuns à esses pacientes.
Conhecendo os esquemas de pensamento possíveis na Depressão, podemos entender claramente porque algumas palavras ditas sem nenhuma pretensão ofensiva e atitudes muitas vezes inocentes podem ser interpretadas negativamente pelos deprimidos. Uma simples brincadeira ao dizer que uma pessoa é feia, chata ou que está incomodando poderá ser interpretada ao pé da letra e não como uma simples brincadeira. Para o paciente depressivo essas brincadeiras podem representar verdadeiras. Podem também interpretar negativamente uma simples reportagem na televisão sobre determinado vírus ou doença.


Pessimismo
Devido ao fato da afetividade depressiva não permitir uma visão mais positiva da realidade, os deprimidos insistem sempre em considerar que a maneira negativa e sombria de perceber as coisas do mundo é uma maneira realista de viver.
Na realidade, se olharmos a vida com muita emoção vamos encontrar motivos que nos entristecem em qualquer lugar e em qualquer situação; crianças carentes, fome universal, guerras, violência urbana, seqüestros, carestia, insegurança social, corrupção, acidentes catastróficos e por aí à fora. Entretanto, é um dever para com nosso bem-estar estarmos adaptados à vida, com tudo que ela tem de bom e de ruim, sem necessariamente nos conformar com tudo.
Estar inconformado significa estarmos sempre procurando melhorar as condições atuais, fazer alguma coisa para mudar a situação para melhor. Esse inconformismo é uma atitude sadia e desejável. A adaptação, entretanto, nos obriga a continuar vivendo apesar de tudo. Reclamando, contestando, protestando ou agindo, porém, vivendo com saúde e determinação. Quando adoecemos por causa das coisas à nossa volta, do destino, da sorte, dos acontecimentos é sinal que estamos, além de inconformados (o que é natural) também desadaptados (o que não é normal).
Nos casos mais graves a pessoa deprimida passa a projetar nos outros as idéias pessimistas que têm à seu próprio respeito. O empresário começa a suspeitar que os outros comentam sua bancarrota, a mulher pudica suspeita que comentam à respeito de sua moral, a adolescente acha que estão comentando ser ela muito feia e chata, o sócio se acha enganado, o marido pensa que sua esposa já não o suporta mais e assim por diante. Na realidade são idéias pessimistas que nascem na própria pessoa e são projetadas nos demais.  

Generalizações
No depressivo há uma tendência em generalizar pensamentos, porém, só os pensamentos negativos. Devido à um afeto que valoriza o lado ruim das coisas o deprimido tende a generalizar seu pensamento; nada em minha vida tem sido bom, tudo que eu faço está errado, para mim tudo é mais difícil, isso só poderia ter acontecido comigo, ninguém gosta de mim e coisas assim.
As generalizações pessimistas não levam em consideração o lado bom da vida. Não leva em conta também a saúde e bem estar daqueles que lhe são queridos, a consideração dos amigos, o fato de, bem ou mal, terem sido superados obstáculos para chegar até aqui, enfim, o deprimido excluí de suas generalizações qualquer elemento positivo de sua vida. E não faz isso propositadamente mas sim, infelizmente, conduzido por um afeto rebaixado. As lentes dos óculos da Depressão não mostram as coisas boas.  

Pensamento Inseguro

Trata-se da sensação de insegurança muito comum aos deprimidos. Esse pensamento é responsável pela pessoa deixar de fazer certas coisas e de freqüentar certos lugares ou que evitem determinadas decisões.
Esse tipo de pensamento se reforça na tendência às generalizações. Há um constante questionamento; se não der certo, se ficar pior, se eu não tiver condições, se eu ficar mal comentado, se eu passar mal. Nos casos de Depressão Atípica a insegurança faz com que se evitem de situações onde certamente passarão mal.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Sobre o Livro: Demônio do meio dia "Andrew Solomon" Uma Anatomia da Depressão

DEMONIO DO MEIO-DIA - UMA ANATOMIA DA DEPRESSAO-ANDREW SOLOMON





O “demônio do meio-dia” foi uma expressão utilizada na idade média tida como uma influência maléfica que provocava os erros no escritor, escultor etc… Podemos considerar o “demônio do meio-dia” como a própria melancolia, ou seja, a perda do sentido da existência; falta de explicação por uma grande perda.Origem da expressão DEMÔNIO DO MEIO DIA


TRECHOS:


Estar em depressão é sentir-se pesado de emoções insolúveis. Tudo gira em torno da inviabilidade e da insensatez. Há vezes em que o mal domina o coração e exala uma tristeza acre. Outras, não há tristeza alguma, mas um vazio que paralisa.




“A depressão é a imperfeição no amor. Para podermos amar, temos que ser criaturas capazes de se desesperar ante as perdas, e a depressão é o mecanismo desse desespero. Quando ela chega, degrada o eu da pessoa e finalmente eclipsa sua capacidade de dar ou receber afeição.” 


“Embora não
 seja nenhum profilático contra a depressão, o amor é o que acolchoa a mente e a protege de si mesma. Medicamentos e psicoterapia podem renovar essa proteção, tornando mais fácil amar e ser amado, e é por isso que funcionam.”


“O amor nos abandona de tempos em tempos, e nós abandonamos o amor. Na depressão, a falta de significado de cada empreendimento e de cada emoção, a falta de significado da própria vida se tornam evidentes. O único sentimento que resta nesse estado despido de amor é a insignificância.”.


Outros trechos:



Trecho 1 – página 60
Geralmente são os eventos da vida que desencadeiam a depressão. ‘Um indivíduo está muito menos propenso a sofrer depressão numa situação estável do que numa instável’, diz Melvin McGuinness, da Universidade Johns Hopkins. George Brown, da Universidade de Londres, é o fundador das pesquisas sobre ‘eventos da vida’ e diz: ‘Acreditamos que a maioria das depressões é anti-social na sua origem; existe também uma doença depressão, mas a maioria das pessoas é capaz de criar uma depressão grave a partir de um determinado conjunto de circunstâncias. O nível de vulnerabilidade varia, é claro, mas acho que pelo menos dois terços da população têm um nível suficiente de vulnerabilidade.’ Segundo sua exaustiva pesquisa realizada durante mais de 25 anos, eventos que ameaçam gravemente a vida são responsáveis pelo desencadeamento inicial da depressão. Tais eventos envolvem tipicamente alguma perda – de uma pessoa querida, de uma função, de uma idéia sobre si mesmo – e se apresentam da pior forma quando envolvem humilhação ou uma sensação de estar preso numa armadilha. A depressão pode também ser causada por uma mudança positiva. O nascimento de um bebê, uma promoção ou um casamento podem desencadear uma depressão quase tão facilmente quanto uma morte ou perda.
Trechos do livro O Demônio do Meio-dia – Uma Anatomia da Depressão, de Andrew Solomon
Trecho 2 – página 123
‘Na depressão, você não pensa que pôs um véu cinzento e está vendo o mundo através da névoa de um estado de espírito ruim. Você pensa que o véu foi retirado, o véu da felicidade, e que agora está realmente enxergando. Você tenta se agarrar à verdade e destrinchá-la, e acredita que a verdade é a única coisa fixa, mas ela é viva e corre de cá para lá. Você pode exorcizar os demonios dos esquizofrênicos que percebem que há algo estranho dentro deles. Mas é muito mais difícil com gente deprimida, porque nós acreditamos estar vendo a verdade. Mas a verdade mente. Olho para mim mesma e penso,’Sou divorciada!’, e isso parece terrível. Embora eu pudesse pensar ‘Sou divorciada!’ e me sentir ótima e livre. Apenas um comentário foi realmente útil durante este pesadelo. Uma amiga disse: ‘Não vai ser sempre assim. Veja se consegue lembrar disso. É assim neste momento, mas não vai ser sempre assim.’ A outra frase que disse e que também ajudou foi: ‘Isso é a depressão falando. Ela está falando através de você.”
Trecho 3 – página 376
As pessoas neste livro são na maioria fortes ou inteligentes ou resistentes ou se destacam de algum modo. Não acredito que haja uma pessoa média, ou que ao contar uma realidade prototípica se possa transmitir uma verdade abrangente. A busca pelo ser humano não-individual, genérico, é a praga dos livros populares de psicologia. Ao ver quantos tipos de resistência, força e imaginação podem ser encontrados, aprecia-se não apenas o horror da depressão, mas também a complexidade da vitalidade humana. Tive uma conversa com um idoso gravemente deprimido que me disse que ‘os deprimidos não têm histórias, não temos nada a dizer’. Todos temos histórias, e os verdadeiros sobreviventes tem histórias interessantes. Na vida real, o ânimo tem que existir em meio à confusão dos brindes, bombas atômicas e campos de trigo.
Trecho 4 – Página 389
O oposto da depressão não é a felicidade, mas a vitalidade, e minha vida, enquanto escrevo isto, é vital, mesmo quando triste. Posse acordar de novo sem minha mente em algum dia do próximo ano: provavelmente ela não ficará por aí o tempo todo. Enquanto isso, porém, descobri o que tenho que chamar de alma, uma parte de mim que eu jamais teria imaginado até o dia, sete anos atrás, em que o inferno veio me visitar de surpresa. É uma descoberta preciosa. Quase todo dia sinto de relance a deses perança, e cada vez que acontece me pergunto se estarei me desestabilizando de novo. Por um instante petrificador aqui e ali, um rápido relâmpago, quero que um carro me atropele e tenho que cerrar os dentes para continuar na calçada até o sinal abrir; ou imagino como seria fácil cortar os pulsos; ou experimento famintamente o metal do cano de uma arma na boca; ou fantasio dormir e jamais acordar de novo. Detesto essas sensações, mas sei que elas me impeliram a olhar a vida de modo mais profundo, a descobrir e agarrar razões para viver. A cada dia, às vezes combativamente e às vezes contra a razão do momento, eu escolho ficar vivo. Isso não é uma rara alegria?




"Escrito com elegância, fruto de meticulosa pesquisa. Esclarecedor e empático, erudito e útil." - Time
"(...) Sua generosa variedade de opiniões, desde questões patológicas até filosóficas, faz do livro uma leitura rica e diversificada." - Joyce Carol Oates - The New York Times
" (...)é um livro acessível e deverá ser útil a todos...O que o torna notável é uma mistura altamente individual do aspecto pessoal com um distanciamento crítico. (...)" - Harold Bloom
"Tão absorvente quanto um thriller, o livro tem ao mesmo tempo, a seriedade e o peso de um marco literário." - John Berendt, autor de Meia-noite no jardim do bem e do mal
"uma jornada tristemente cândida, fascinante e exaustiva, a uma das mais escuras câmaras do coração humano." - Daniel Goleman, autor de Inteligência Emocional




segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Platão

"
No primeiro degrau o simples Amor pelas coisas terrenas, pelas belas coisas terrenas. Progredindo chega-se às belas formas; das belas formas ao belo proceder; do belo proceder aos belos princípios; dos belos princípios, ao princípio último que é o da beleza absoluta.E a beleza absoluta só pode ser Deus."


"Você pode descobrir mais sobre uma pessoa em uma hora de brincadeira do que em um ano de conversa."

"O tempo é a imagem móvel da eternidade imóvel. "

"O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê "

"Podemos facilmente perdoar uma criança que fique com medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os adultos ficam com medo da luz."
"Descobri que o amor sem limite é a medida certa do amor." 

domingo, 23 de outubro de 2011


Sobre loucura:


A loucura, porém, não está somente ligada às assombrações e aos 
mistérios do mundo, mas ao próprio homem, às suas fraquezas, às 
suas ilusões e a seus sonhos, representando um sutil relacionamento 
que o homem mantém consigo mesmo. Aqui, portanto, a loucura não 
diz respeito à verdade do mundo, mas ao homem e à verdade que 
ele distingue de si mesmo. 

Foucault: A História da Loucura


Em sua tese de doutorado A História da Loucura na Idade Clássica ( 1961), Foucault trata de um tema estranho à academia e que inova no modo de abordar a loucura. Ele a situa na história a partir do século 15, até o tratamento asilar que surge em fins do século 18 e que se transforma no hospital psiquiátrico moderno.


O rosto, os gestos e atitudes da loucura sempre foram reconhecidos, mas o modo de "tratar" e de lidar com a loucura sofreram transformações que seguem ou são criadas por diferentes necessidades sociais e econômicas. Nem sempre o louco foi percebido como doente mental, alvo de intervenção médica. A "Nau dos Loucos" no fim da Idade Média (quadro acima de Bosh), percorria os portos e ora deixava essas estranhas figuras para serem encarceradas, ora seguia com elas de porto em porto, sem que representassem uma ameaça à razão ou à ordem social. Isso só aconteceu mais tarde, com a criação do Hospital Geral, que como o nome indica, encarcerava doentes, vagabundos, loucos. 

Prender ou não e quem prender, dependia da falta ou excesso de mão de obra. Olhar e intervir no Hospital Geral se deveu, em parte, aos protestos de presos políticos da Revolução Francesa, que exigiam tratamento diferenciado daquele dado aos pobres e delirantes. Finalmente os loucos foram separados dos demais. Na França, Pinel inaugura o asilo, o mesmo fez Tuke na Inglaterra. A obediência, o rigor disciplinar, o poder do médico de acalmar o doente, fazer com que ele reconhecesse seu "erro", olhar a si mesmo e acabar por admitir que delirava, voltar à realidade, tudo isso põe a loucura num novo patamar, o do olhar objetivador, médico, científico. O louco é libertado das correntes e preso a um novo ordenamento de saber: a loucura se torna doença mental.


O passo seguinte para as instituições psiquiátricas que combinam a hierarquia do asilo com choque, química e intervenções cirúrgicas foi o que o próprio Foucault verificou, logo após se formar em filosofia pela Sorbonne, quando foi voluntário no Hospital Sainte-Anne.


O sofrimento do doente, o internamento, como tratar, se há tratamento, o que é doença mental, como diagnosticar, todas essas questões são hoje levantadas. Não há resposta clara. Há um lado trágico da loucura presente nas obras literárias, na pintura, no cinema. Há outro lado em que se pretende enquadrar como doença sujeita a algum tipo de intervenção.


Em suma, pouco sabemos, somos confrontados com pessoas e seu sofrimento. A situação é melhor quando se recusa o conceito de loucura e se prefere o de doença mental? O que é o físico e o mental? O que é comportamental e o que é experiência pessoal? Com tantas dúvidas, que se tenha, pelo menos, cautela. Para Foucault são acontecimentos na ordem do saber que têm efeitos de poder.

Pintura Nau dos Insensatos (Bosch)
A nau dos insensatos é uma alegoria persistente no imaginário. Aqui aparece segundo a versão de Bosch, um dos mais instigantes mestres da pintura. A insensatez como sinônimo de loucura, alienação, coisas que, no cenário medieval, eram associadas ao pecado e, por isso, demonizadas. O louco medieval não pertencia ainda à categoria dos doentes, mas integrava a sociedade como uma espécie de pária, muitas vezes profeta, outras vezes, possesso. Era preciso normalizá-lo, adequando-o à linha de conduta vigente. Não existe loucura, apenas loucos, e neste amplo quadro cabiam e cabem ainda as mais vastas concepções de desajuste, desde os extáticos, passando pelos mansos e indo até os furiosos. A loucura tem uma história, e ela não é, de modo algum, a história dos loucos. Loucos não tem voz. São fundo, não forma. Bodes expiatórios que carregam em suas sacolas todas as negações que afligem aos normais, purificando-os de suas culpas. Loucos e criminosos devidamente isolados, seja pelo hospício, pelo cárcere ou pela medicação silenciam a inconsciênica de todos nós.




quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A Nossa Vitória de cada Dia


Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.


Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

quarta-feira, 19 de outubro de 2011


PENSAMENTO PARA REFLETIR
Deixa-me Falar-te de AmorNesta era em que tudo é fabricado, em que nada é natural, em que nada é puro; em que os primeiros beijos se trocam por telemóvel, se fala por sms e os ditos «encontros românticos» acontecem no cinema, entre um balde de pipocas e um copo de coca-cola, nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; deixa-me falar-te de amor. Não quero falar deste «amor» novo, feito de «roda-bota-fora», que nasce podre e é vazio. Não te quero falar do amor para passar tempo, que se joga na Internet; nem daquele que se conhece num bar ou numa discoteca. 

Não: deixa-me falar-te de amor como o conheço, da mesma forma lamechas e (hoje) tão fora de moda; a mesma que te ensinaram os teus pais ou os teus avós; como era antigamente, quando passeavam junto ao rio, por vezes de mãos dadas, e coravam ainda, se encontravam alguma cara conhecida. Deixa-me falar-te do amor que me ensinaste. O amor que me ensinaste começou por um acaso, porque, por acaso, eu estava sozinha e tu também. O amor que me ensinaste não foi cozinhado nem confeccionado a propósito. 

No nosso amor, tu dás-me a mão e eu coro; convidas-me para sair e eu hesito; brincas com os meus caracóis e eu gosto; bebemos chá e ficamos ébrios; passeamos à beira-rio e pode ser que nos beijemos. No nosso amor, não somos só amantes, mas somos cúmplices. E companheiros. Olhas para mim e lês-me nas entrelinhas. Olho para ti e sei-te de cor. Sorrio e mergulhas nesse sorriso. Abraças-me e absorves-me inteira. Dizes-me «amo-te» e eu acredito. 
O amor que me ensinaste é puro, é natural, é biológico, sem corantes nem conservantes. Mas deixa-me contar-te um segredo: nesta era, que já não é minha, já não é tua, já nem é nossa; o nosso amor, ainda encanta! 

Ana Rita da Silva Freitas Rocha, in 'Textos de Amor – Museu Nacional da Imprensa' 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A solidão amiga Rubem Alves


A solidão amiga



A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.!“Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.Ali as palavras e os tempospoemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.(Correio Popular, 30/06/2002)