domingo, 23 de outubro de 2011


Sobre loucura:


A loucura, porém, não está somente ligada às assombrações e aos 
mistérios do mundo, mas ao próprio homem, às suas fraquezas, às 
suas ilusões e a seus sonhos, representando um sutil relacionamento 
que o homem mantém consigo mesmo. Aqui, portanto, a loucura não 
diz respeito à verdade do mundo, mas ao homem e à verdade que 
ele distingue de si mesmo. 

Foucault: A História da Loucura


Em sua tese de doutorado A História da Loucura na Idade Clássica ( 1961), Foucault trata de um tema estranho à academia e que inova no modo de abordar a loucura. Ele a situa na história a partir do século 15, até o tratamento asilar que surge em fins do século 18 e que se transforma no hospital psiquiátrico moderno.


O rosto, os gestos e atitudes da loucura sempre foram reconhecidos, mas o modo de "tratar" e de lidar com a loucura sofreram transformações que seguem ou são criadas por diferentes necessidades sociais e econômicas. Nem sempre o louco foi percebido como doente mental, alvo de intervenção médica. A "Nau dos Loucos" no fim da Idade Média (quadro acima de Bosh), percorria os portos e ora deixava essas estranhas figuras para serem encarceradas, ora seguia com elas de porto em porto, sem que representassem uma ameaça à razão ou à ordem social. Isso só aconteceu mais tarde, com a criação do Hospital Geral, que como o nome indica, encarcerava doentes, vagabundos, loucos. 

Prender ou não e quem prender, dependia da falta ou excesso de mão de obra. Olhar e intervir no Hospital Geral se deveu, em parte, aos protestos de presos políticos da Revolução Francesa, que exigiam tratamento diferenciado daquele dado aos pobres e delirantes. Finalmente os loucos foram separados dos demais. Na França, Pinel inaugura o asilo, o mesmo fez Tuke na Inglaterra. A obediência, o rigor disciplinar, o poder do médico de acalmar o doente, fazer com que ele reconhecesse seu "erro", olhar a si mesmo e acabar por admitir que delirava, voltar à realidade, tudo isso põe a loucura num novo patamar, o do olhar objetivador, médico, científico. O louco é libertado das correntes e preso a um novo ordenamento de saber: a loucura se torna doença mental.


O passo seguinte para as instituições psiquiátricas que combinam a hierarquia do asilo com choque, química e intervenções cirúrgicas foi o que o próprio Foucault verificou, logo após se formar em filosofia pela Sorbonne, quando foi voluntário no Hospital Sainte-Anne.


O sofrimento do doente, o internamento, como tratar, se há tratamento, o que é doença mental, como diagnosticar, todas essas questões são hoje levantadas. Não há resposta clara. Há um lado trágico da loucura presente nas obras literárias, na pintura, no cinema. Há outro lado em que se pretende enquadrar como doença sujeita a algum tipo de intervenção.


Em suma, pouco sabemos, somos confrontados com pessoas e seu sofrimento. A situação é melhor quando se recusa o conceito de loucura e se prefere o de doença mental? O que é o físico e o mental? O que é comportamental e o que é experiência pessoal? Com tantas dúvidas, que se tenha, pelo menos, cautela. Para Foucault são acontecimentos na ordem do saber que têm efeitos de poder.

Pintura Nau dos Insensatos (Bosch)
A nau dos insensatos é uma alegoria persistente no imaginário. Aqui aparece segundo a versão de Bosch, um dos mais instigantes mestres da pintura. A insensatez como sinônimo de loucura, alienação, coisas que, no cenário medieval, eram associadas ao pecado e, por isso, demonizadas. O louco medieval não pertencia ainda à categoria dos doentes, mas integrava a sociedade como uma espécie de pária, muitas vezes profeta, outras vezes, possesso. Era preciso normalizá-lo, adequando-o à linha de conduta vigente. Não existe loucura, apenas loucos, e neste amplo quadro cabiam e cabem ainda as mais vastas concepções de desajuste, desde os extáticos, passando pelos mansos e indo até os furiosos. A loucura tem uma história, e ela não é, de modo algum, a história dos loucos. Loucos não tem voz. São fundo, não forma. Bodes expiatórios que carregam em suas sacolas todas as negações que afligem aos normais, purificando-os de suas culpas. Loucos e criminosos devidamente isolados, seja pelo hospício, pelo cárcere ou pela medicação silenciam a inconsciênica de todos nós.




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